sábado, julho 10, 2004

Desilusão

Depois da decisão de ontem, só uma coisa me pareceu natural que fizesse, enquanto cidadão anónimo. É por isso que acabo de enviar, via e-mail, esta carta ao Presidente da República:

"Exmo. Sr. Presidente da República:

É numa hora de pesar que lhe escrevo. Faço-o pela primeira vez, para manifestar a minha discordância relativamente à decisão que ontem comunicou ao país.

O conceito de Democracia foi algo com que cresci. Não conheci a vida em Portugal sob o efeito de uma ditadura tenebrosa. Felizmente, posso dizer que sou parte da juventude de um país cuja existência não foi, em momento algum, ensombrada pela existência de fantasmas ditatoriais, de sistemas de perseguição, censura e asfixia da liberdade de expressão. Felizmente, posso dizer-me um dos filhos mais novos das conquistas de Abril. De entre elas, a mais importante foi, claramente, o direito a eleições livres, o direito ao voto que tem consequências directas na vida dos cidadãos. O direito, senhor Presidente, a que a voz de cada português seja ouvida e tomada em consideração na formação dos orgãos de soberania política portugueses. Digo-lhe, desde já, que, numa época em que se assiste a um afastamento da sociedade portuguesa da sua realidade política e, sobretudo, do voto, seja em eleições, seja em referendos, eu, desde que tal me é permitido legalmente, sempre cumpri o meu dever de voto. Conscientemente, confiante na importância do meu acto, como garante da própria Democracia.
A primeira vez que o Dr. Jorge Sampaio concorreu a eleições para a Presidência da República, eu era ainda menor, não podendo, consequentemente, expressar a minha opinião. No entanto, em 2001, quando se recandidatou, votei. Votei em si, Dr. Jorge Sampaio. Votei em si porque me pareceu ser a melhor escolha, das que se apresentavam às referidas eleições. Porque me pareceu o senhor a pessoa indicada para ser o garante daquilo que é preconizado no artigo 9º da Constituição da República Portuguesa, das Tarefas Fundamentais do Estado: “Defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais”.

Neste momento, arrependo-me da escolha que fiz, Dr. Jorge Sampaio. A sua decisão, num momento tão delicado, demonstrou que também o senhor, afinal, acha que os cidadãos portugueses não conseguem decidir por si mesmos. Numa situação que é, ela sim, um “pântano político”, com a demissão de um Primeiro-Ministro de um governo cuja coligação nunca foi sujeita a eleições e que, na primeira vez que o faz obtém uma votação absolutamente desastrosa, demonstrando a posição do povo português relativamente a essa mesma coligação; numa situação em que, contra a própria lógica das eleições legislativas, a campanha do partido mais votado se centra não no próprio partido, mas sim no seu cabeça de lista, então futuro Primeiro-Ministro de Portugal, Dr. José Manuel Durão Barroso; numa situação, dizia eu, com todas estas condicionantes, a demissão do Primeiro-Ministro representa, creio, o fim de uma linha política, de uma determinada orientação do Governo. Sobretudo quando se sabe que a personalidade que será, depois da sua decisão anunciada ontem, Primeiro-Ministro de Portugal, corresponde a uma linha ideológica e a uma lógica de actuação particularmente divergentes daquelas que vinham sendo, até agora, defendidas pelo Governo de coligação.
Assim sendo, seria para mim evidente (e, como creio o senhor ter-se-á apercebido pelos sinais que lhe foram chegando da própria sociedade civil) que a clarificação daquela que é actualmente a real vontade de todos os portugueses passaria, necessariamente, pela dissolução da Assembleia da República e convocação de eleições legislativas antecipadas. Seria a decisão lógica e desejável, devolver ao povo português o poder de decisão conquistado em Abril e permitir a todos nós, cidadãos cumpridores dos nossos deveres e cientes dos nossos direitos, o expressar do nosso julgamento sobre a matéria, que é do máximo interesse nacional, a decisão sobre quem nos governará nestes tempos particularmente importantes.
Reporto-me novamente à Constituição, no seu artigo 10º, do Sufrágio Universal e Partidos Políticos, para recordar o ponto B: “Os partidos políticos concorrem para a organização e para a expressão da vontade popular, no respeito pelos princípios da independência nacional, da unidade do Estado e da democracia política.” No meu entender, este ponto não foi respeitado neste processo. Não foi procurada, pelos partidos políticos, mas também pela Presidência da República, a expressão da vontade popular e muito menos no respeito da democracia política.

O senhor sempre me pareceu um garante de justiça, de equilíbrio, de ponderação. Lamento ter de o dizer, mas esta decisão mostrou-me que o fiel da balança que eu pensava que o senhor era, afinal, não existe. Infelizmente, senhor Dr. Jorge Sampaio, sinto que dificilmente voltarei a votar em eleições presidenciais, pela desilusão que o senhor me incutiu ontem à noite. Infelizmente, a Presidência da República informou-me ontem, via televisão, que não confia em mim e em todos os restantes cidadãos portugueses para juntos escolhermos a melhor opção para nos governar a TODOS. Infelizmente, senhor Dr., os seus dois mandatos como Presidente da República Portuguesa ficarão para sempre manchados por uma decisão que é um desrespeito completo pela Democracia que o senhor mesmo tanto lutou para instituir. Prestou ontem um péssimo serviço à Democracia Portuguesa, Dr. Jorge Sampaio. Dificilmente eu e muitos outros portugueses lhe perdoaremos algum dia esta decisão.

Grato pela atenção dispensada a esta minha opinião, com os mais respeitosos cumprimentos,


Tiago _____________, cidadão português."


Aconselho quem se sentir tão desiludido quanto eu a fazer o mesmo. Gostava de poder olhar nos olhos o dr. Jorge Sampaio e dizer-lhe o quanto estou desiludido com ele e como nunca mais terá a minha confiança. Como nunca o perdoarei pelo desrespeito que teve para com a Democracia. Espero que o Dr. Jorge Sampaio sinta o resto da vida o erro que cometeu com esta decisão, o atestado de inépcia que passou a todos nós.