quarta-feira, maio 04, 2005

A desonestidade intelectual a que nos habituaram os jornalistas

Nesta notícia de um dos semanários tomarenses, o jornalista decidiu prestar um favor à Câmara Municipal de Tomar, cujo afã betoneiro leva a que, por exemplo, se tenha construído um parque de estacionamento na colina onde assenta o Convento de Cristo (Património Mundial da Humanidade, se bem estão recordados) e ainda tenha havido indignação quando o IPPAR levantou problemas. Todo o tom da notícia é, além de jocoso, gozão mesmo, de um nível argumentativo digno das piores reportagens da TVI.

Mas o principal problema é a ignorância retratada no texto, da parte de quem o escreve. Nada a que os jornalistas portugueses não nos tenham já habituado. Na transcrição da afirmação do edil tomarense de que "O IPA, Instituto Português de Arqueologia, exige o acompanhamento arqueológico das obras e a câmara suporta o pagamento aos arqueólogos", há duas questões que se me colocam:
Primeiro, terá mesmo António Paiva dito aquilo dessa forma? Se o fez, deveria repensar a forma como se refere a aspectos legais do património cultural português e à orgânica dos institutos públicos portugueses. Ainda assim, tenho dúvidas que a afirmação tenha sido proferida exactamente desta forma. Afinal, nem entre aspas surge, como manda a regra nas citações.
Segundo, não é o IPA que exige o acompanhamento arqueológico das obras. É a legislação portuguesa que assim dita. O que é que esperava a Câmara Municipal de Tomar? Que pudesse fazer obras em pleno centro histórico sem o devido acompanhamento?! Já era altura das Câmaras Municipais percebrem de uma vez por todas que o conceito de Centro Histórico não pode ser maleável, moldável às suas vontades! Os centros históricos não podem continuar a servir de desculpa para obter financiamentos comunitários à sua valorização, por um lado, e serem alvo de obras sem o devido acompanhamento arqueológico porque dá mais jeito, por outro!

Agora, quanto ao pagamento do referido acompanhamento arqueológico, a questão também é muito simples. Quem é o responsável pela obra? Ou seja, em última análise, quem é que vem pôr em causa a integridade do património pré-existente que, de outra forma (não se realizando a referida obra) se manteria inalterado, preservado na sua condição subterrânea? Trocando por miúdos, quem é que se propõe danificar ou destruir património arqueológico (e, por conseguinte, do Estado português)? É a Câmara Municipal de Tomar? Então, que pague as devidas medidas de minimização e salvaguarda, como é sua obrigação! Aliás, como bem refere a Lei de Bases do Património Cultural, no seu Artigo 3º, "O conhecimento, estudo, protecção, valorização e divulgação do património cultural constituem um dever do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais". Claro como água que, neste caso, o município tomarense tem duplas responsabilidades, não?

Assim, afirmações como "Além dos valores cobrados à câmara, os arqueólogos recebem ainda dos particulares quando estes realizam obras de recuperação de habitações na zona histórica. Caso para dizer que mal sabiam os romanos que deixavam esta mina aos arqueólogos." são, no mínimo, desonestas. Primeiro, porque não se trata de nenhuma mina, visto que esse valor serve para custear a intervenção, não vai direito para o bolso dos arqueólogos, como parece insinuar o jornalista (e o que fica de honorários é o pagamento por um trabalho. Ou o sr. jornalista não é pago pelo trabalho que efectua?). E, além disso, se proprietários privados querem proceder a obras em habitações situadas na zona histórica, têm, tal como a Câmara Municipal, de custear o respectivo acompanhamento arqueológico. Não é difícil de perceber, esta lógica. A menos que sejamos um jornalista sensacionalista, pouco conhecedor das realidades sobre as quais escreve, com vontade de fazer favores a quem pretende destruir património de forma impune e pouco profissional. Ou isso, ou o próprio jornalista tem uma casa naquela zona...