terça-feira, maio 24, 2005

Vamos todos ter muito orgulho e ser muito felizes porque somos portugueses [NOT!]

Nada me irrita mais do que o patriotismo bacoco, o patriotismo "porque sim". Aquele sentimentozinho que nos leva a repetir ad infinitum "o que é nacional é bom", vampirizando slogans publicitários para a linguagem de uso corrente, mesmo quando, na verdade, o que é nacional não é bom. Está na moda de há algum tempo para cá combater a atitude tipicamente crítica portuguesa. É o "Portugal positivo", o "Portugal em acção" (tudo iniciativas neo-liberais, já repararam?), o "vá lá, nem tudo é mau, vais ver que, no fundo, isto até é bom, nós é que temos a mania de dizer mal". E, como todas as mentiras, se repetidas muitas vezes, esta pode vir a tornar-se verdade. Esta ideia, associada ao paternalismo latente que leva muita gente a, quando Portugal é atacado por um português, dizer que "fala com sangue quente" ou "sem pensar". Porque não é bem assim, é o que querem dizer.

Desde ontem que estou à espera que, para lá destes comentários, me digam quais são, então, esses grandes motivos de orgulho em ser português. Pelos vistos, para lá do "temos de ter orgulho" e "tu não pensas bem isso assim", não há nada a apresentar.

É o défice de 6,83% que nos deve orgulhar? A corrupção tentacular, espalhada por todos os sectores da sociedade (de que o caso da BT do Algarve é um óptimo exemplo)? Uma das molduras legais mais atrasadas da zona Euro, em termos de direitos humanos (aborto, igualdade de género, direitos homossexuais...)? Uma profunda ingerência da Igreja Católica na vida pública, privada, política e legislativa do país? O tráfico de influências que, mais uma vez, veio ao de cima após estas últimas eleições? O previsível pagamento de mais impostos e de portagens nas SCUT's? A convivência terceiro-mundista entre a futura Alta de Lisboa e os bairros de lata em Camarate? O efeito-sorvedouro que Lisboa tem sobre o resto do país? A percepção de que são sempre as mesmas famílias que mandam no país, saltitando alegremente do Estado para os grandes grupos económicos, consoante o ciclo eleitoral? A fantástica A1 que temos onde, apesar das obras em troços de mais de 20 km, se continuam a pagar as portagens na íntegra? É o baixo nível cultural médio da população portuguesa? As dificuldades que os jovens portugueses têm em sair de casa? Os ataques histéricos à Educação Sexual nas escolas, apesar do número de mães adolescentes e da propagação de DST's? O valor ridículo que se investe em cultura e ciência? O clima de "multidão ululante" que existe sempre que o tema é futebol? As manchas de fuel-óleo que se desviam da costa portuguesa por obra e graça da Nossa Senhora de Fátima? A forma como os governantes se estão positivamente a cagar para aquilo que é a opinião geral do povo e continuam a distribuir tachos e tachinhos consoante as conveniências? São os subsídios de reintegração chorudos pagos aos deputados que abandonam funções ao fim de uma legislatura? São os movimentos emergentes de extrema-direita? A pedofilia que parece cada vez mais ser prática corrente por todo o país? São as Vanessas e as Joanas? É o facto de dois portugueses andarem à pancada porque "o teu clube ganhou o campeonato e o meu não e agora não te deixo ir festejar para esta rua"? É o facto de ser da responsabilidade dos agentes policiais o pagamento da sua própria farda em caso de a danificarem no cumprimento do dever? É o facto de, não existindo Bombeiros Voluntários, este país não ter quase corpo de bombeiros? (I could go on and on...)

Todo este apelo ao "orgulho em Portugal" lembra-me a atitude mesquinha, pacóvia, idiota, de apoiar Durão Barroso ou D. José Policarpo "porque é português". De abrir um telejornal com uma notícia sobre um tsunami que vitima 300 mil pessoas com um ar de alívio porque "ainda não se conhecem vítimas portuguesas". E isto, sim, é ser português. É viver alegremente a caminho da miséria (material e mental), convencidos que estamos de que o nosso desenrascanço nos vai safar mais uma vez e que tansos são os outros, que se preocupam. Porque, afinal, há que ter orgulho em ser português. E amar este país. Muito. Por mais que ele nos odeie.

Então, qual é o tal motivo de orgulho? Porquê gostar de Portugal? Porque é bonito? Bonito deve ser o Mali. Ou o Burkina Faso. Pelo Sol? Ouvi dizer que o Sahara Ocidental tem um Sol fantástico, não querem ir lá espreitar e amar esse país, também? Pela simplicidade das gentes? No Egipto as crianças são tão "simples" que basta um ocidental andar com esferográficas para distribuir por elas que tem logo um monte de amigos/guias/guarda-costas. Pela nossa história? Ouvi dizer que a Colômbia tem uma história riquíssima. Pelos nossos monumentos? O Irão tem uns belos templos.

Pode ser que haja no futuro um motivo de orgulho. Eu neste momento não o vejo, sinceramente. Até lá, nós por cá continuamos, alegremente patridióticos, a dizer continuamente que "esses gajos [os europeus civilizados] vivem melhor, mas são uns tansos, nós cá divertimo-nos mais" e a acreditar que, se nos convencermos disso, seremos mesmo mais felizes.

Nota: Este post não exclui que existam coisas boas em Portugal. Existem, sim. Somos, por exemplo, óptimos na indústria de moldes. E existem micro-empresas portuguesas a desenvolver software crítico (o tal que não pode MESMO falhar) para as missões da NASA. Sim, somos bons em algumas coisas. Mas isso não chega para levar atrás o resto do país, nem para me tapar os olhos e levar a dizer que adoro Portugal. Nem que seja "porque sim".