quinta-feira, junho 17, 2004

Meu corpo, que mais receias?

Bordado. Preto. O relevo lembrava vagamente brocado, espirais ou flores, não consegui perceber muito bem. Nunca mais vou esquecer o perfil da sombra, o burlesco que me pareceu, assim, de repente. E como, instantes depois, já eu me esquecia de tudo isso, distraído com mãos, cabelos, olhos, bocas. O cheiro, lembro-me perfeitamente do cheiro. Nunca mais senti nada assim. Excepto uma vez, um ano mais tarde, na rua. E não consigo ainda hoje perceber o que é, nem como foi possível, mais tarde, longe, bem longe, encontrá-lo de novo. Reconhecê-lo imediatamente. Sentir as minhas próprias reacções a uma recordação tão vívida (e vivida). O arrepio que eu sei que conheces bem. Porque é igual ao que me fazias. Quando me dizias ao ouvido aquela primeira frase do Jorge que te ensinei na primeira noite, lembras-te? "Meu corpo, que mais receias?"
Mordiscavas-me até que eu respondesse aquilo que esperavas, que querias ouvir. Porque tinha sido essa a senha que tinha partilhado contigo. "Receio quem não escolhi."
Às vezes, demorava mais a responder. Sabes bem que sim. E porquê. Admirava o teu entusiasmo, a forma como te entregavas. Como tudo era tão a sério. E tão a brincar.
Os teus Descobrimentos eram mais discretos. Mas mais divertidos.

Há uns dias, vi um anúncio de uma marca de batons. Não pude evitar um largo sorriso. Uma das modelos, boneco pago para me/te fazer acreditar que aquele sim, é o baton que seca num milionésimo de segundo e que dura 72 horas exposto à água do mar ("Mafu, Mafu, mata moscas, melgas e mosquitos! Mafu mata bem e mata mesmo! Mafu! Mafu! Mafu! É o seu insecticida!" Rias-te tanto quando eu me punha a cantar isto, de balde na mão...), uma das modelos, dizia eu, fez uma expressão. Uma expressão que conheço bem. É tua. Aquele dia em que caí, naquele célebre jogo (de nível mundial), o "Latinos" versus "Resto do mundo". Tenho uma vaga ideia desse momento. Do choque contra o Christian. Não me lembro bem para onde estava a olhar. Mas sei que, de repente, a imagem deu uma volta de 180 graus, ao mesmo tempo que algo me atingia no estômago. Maldita vedação! A expressão da modelo do baton era igual à que fizeste quando vieste ver como estava.
A pressão latente nos colchetes... Abril refeito a cada noite. Gostavas de Abril. Achavas piada, à história. Achavas o Salgueíru Máiá um centurioni, pronto a derrubar as muralhas do Cármó. Divertia-me a explicar-te os pormenores. Porque me divertiam as tuas reacções aos detalhes tão portugueses como o cravo na espingarda. Ou a distribuição de comida pela população aos militares, ainda durante a operação. Os cânticos da população pelas ruas, durante um cerco. Mas sobretudo porque via o brilho nos teus olhos. Como acreditavas que Abril era possível. Como me dizias que não seria bem assim, cada vez que eu fazia aquele ar sério só para dizer que Abril não tinha sido feito, que muitas das promessas não tinham sido cumpridas. Que hoje estávamos, afinal, mais perto do que imaginávamos ser possível de Março. E como quase me convencias.

Sempre me convenceste. Sem eu dar por isso. Para tudo, entusiasmava-me a tua criatividade. Assustava-me, às vezes. Mas não o suficiente para me enegrecer o horizonte.