terça-feira, março 29, 2005

Not all of them are cheesy

“Porto, 8/3/45

A propósito do seu P.S. (e dizem que as mulheres é que usam e abusam deles, é lê-lo a si. Ou a natureza se enganou). Também eu me retratei há tempos para lhe mandar, mas ficou também tão mal que não tive coragem de meter tal retrato num envelope e mandar-lhe. De resto está diferente do que estou agora, cabelo cortado, caracolinhos soltos com mais ou menos sobriedade, fico mais saudável de aspecto e dizem que mais nova o que aliás me não interessa e até me prejudica na minha vida profissional. E nem sequer ao menos impede o aparecimento de cabelos brancos que se eu esquecesse me lembrariam que caminho rapidamente para os 25 anos, o que, repito, nada me rala porque cada ano se vive diferente, bem ou mal, independentemente da idade, dependente do momento. Por momentos gostaria de correr e saltar, por outros me sinto tão velha como a minha avó, ou mais ainda. Por correr e saltar, não se ria, quando estou no campo e vejo ervinha verde, crescida, tenho uma pena imensa de não ser cabrinha ou outro qualquer bichinho no género. Já as viu alguma vez? Dão uns saltos duma comicidade irresistível, espojam-se, comem tranquilamente, parecem tontinhas de liberdade, da planura, ou da abundância de pasto ou de nada. Pois divirto-me imenso só a pensar que poderia fazer tudo aquilo se tivesse 4 patinhas e no corpo um pelinho comprido sujeito a tosquia periodicamente e chego a invejá-los, pobres animaizinhos, que nem sequer têm a consciência da sua embriaguez de ar livre. E eu que a tenho não me é dado gozá-la como elas a gozam totalmente, terei de conservar a minha impecável compostura ou só darei por mim num manicómio com caras desoladas a contemplarem-me sem compreensão pelo meu momento de total alegria, e da sã – a menos que o não seja por não ser espiritual, mas eu acho que sim e não me interessa o resto.

Já alguma vez pensou nisto? Eu penso e sinto muitas vezes. Duas vezes por semana vou à Foz dar uma aula e quando, de eléctrico, passo a última parte da Avenida, campos dum lado e doutro, uma nora, um pinhalzinho, é rara a vez que não me acodem desejos de sair do carro e transformar-me numa inocente cabrinha, o resto ficaria por minha conta.

E não digo nada a ninguém, digo-o a si muito em segredo, ouviu? E digo-lhe porque o considero a encadernação do meu diário. Ora diga-me se não foi esta uma feliz imagem! Feliz e bonita, concorde.

Tão bonita que resolvo fazer dela ponto final, só lhe aponho saudades, saudades sempre vivas.

Mécia” [de Sena]

Apesar de os diminutivos serem, pelos vistos, realmente obrigatórios.

Bibliografia: Isto tudo que nos rodeia (Cartas de amor) - Mécia de Sena e Jorge de Sena, Imprensa Nacional - Casa da Moeda