Eu já andava a prometer...
Pergunta-me muito boa gente se a nomeação da ex-presidente da Fundação Ricardo Espírito e Silva como Ministra da Cultura não é bom sinal para a área do Património Cultural. Já tive oportunidade de referir a minha opinião, não necessariamente favorável. Mas hoje trago-vos um fragmento da História, um facto que passou ao lado do grande público aqui há uns anos e que muita luz pode trazer sobre a forma de encarar o Património deste tipo de individualidades. Falemos de factos, em vez de considerações socio-políticas, então:
A 8 de Julho de 1716, a sumptuosa embaixada de D. João V ao Vaticano é recebida pelo Papa Clemente XI. Entre inúmeras riquezas, contava-se um conjunto de três coches* (atente-se, um conjunto, não se tratam de três coches, mas sim de um conjunto composto de três peças). Estes três coches representam uma obra única do Barroco português, tendo sido efectuados com um trabalho de entalhe de excepcional qualidade e com a particularidade de serem, na sua quase totalidade, dourados a mordente, de forma a resistirem à chuva e humidade decorrente da utilização dos coches.
Um primeiro coche viria a ser conservado pelo Instituto José de Figueiredo (actual Instituto Português de Conservação e Restauro), vindo esta intervenção a ser geralmente aceite pelo meio da Conservação e Restauro. Aquando da Expo 98, um segundo coche, o Coche dos Oceanos, viria a ser também ele intervencionado. Ora, o Museu dos Coches procurou um mecenas que custeasse os cerca de 60 mil contos da intervenção necessária no Coche dos Oceanos, bem como alguém que fizesse a intervenção. O mecenas viria a ser o Banco Espírito Santo, a intervenção acabaria por ser feita pela Fundação Ricardo Espírito Santo e Silva (presidida pela actual Ministra da Cultura). Nem me vou deter na coincidência de apelidos...
Pessoas mais conhecedoras da história dizem-me que aquando do tratamento do primeiro coche, pelo IJF, a identificação do mordente viria a ser inconclusiva, por ser uma técnica pouco comum em Portugal.
Quanto ao Coche dos Oceanos, este foi totalmente desmontado, tendo sido refeitas lacunas na madeira de suporte. Até aqui, consoante o estado das referidas madeiras, até se poderia considerar esta como uma metodologia aceitável. No entanto, a intervenção não ficou por aqui. Tecidos originais foram substituídos por novos e, pior que tudo, o coche foi redourado a água, sobre o original. Para compôr ainda mais o ramalhete, esta nova camada de ouro foi brunida, técnica que dá ao ouro um brilho muito superior e que nunca tinha sido aplicada originalmente no Coche dos Oceanos, visto que a técnica de douramento a mordente não permite tal procedimento.
Ou seja, o Coche dos Oceanos foi completamente desvirtuado, destruído na sua essência como obra de arte, visto hoje apresentar um brilho Pepsodent que nunca existiu. Mais grave se torna esta série de erros grosseiros quando comparado com os restantes coches. Sim, porque não nos esqueçamos que era suposto o Coche dos Oceanos fazer conjunto com outros dois!
Quis o Museu dos Coches que assim se fizesse. O BES pagou e a FRESS efectuou o trabalho. Estávamos perante um crime histórico e patrimonial. Os restantes coches não se encontravam num estado de degradação tal que justificasse uma intervenção tão profunda. Aquele que foi tratado pelo IJF lá continua, sem problemas. Não há absolutamente nenhuma justificação possível para este atentado. No entanto, ainda se tenta, numa publicação relativa à intervenção, culpabilizar outro interveniente no processo (sacudir a água do capote, é uma especialidade de algumas pessoas, como sabemos.).
Fundamento teórico? É muito simples, esta intervenção não respeitou nem a Teoria da Intervenção Mínima nem os conceitos de reversibilidade dos tratamentos aplicados, que são as linhas-guia de qualquer conservador-restaurador digno desse nome actualmente (e sim, estes princípios já são largamente difundidos há anos, mesmo antes desta intervenção). Assim sendo, como é possível que a Fundação Ricardo Espírito Santo e Silva, referenciada pela Comunicação Social como uma instituição ligada à Conservação e Restauro cometesse um erro tão grosseiro? Muito simples, o facto é que a referida Fundação não se ocupa da Conservação e Restauro baseada em quadros técnicos qualificados, em termos científicos (ou, pelo menos, não o fazia à época). O facto é que a lógica por trás da visão que esta Fundação tem da Conservação e Restauro se baseia em técnicas artesanais, numa aproximação empírica, não sustentada em factos científicos, da intervenção a desenvolver. Conclusão? Fizeram porcaria, de tal forma que o caso é estudado em Universidades estrangeiras como um exemplo do que não se deve fazer, havendo, inclusivamente, visitas de estudo propositadamente para ver como é possível "matar" património tão raro e valioso com um sorriso plastificado nos lábios!
Pormenores extra: aparentemente, a proposta de tratamento inicial referia apenas a reintegração das lacunas existentes na camada de ouro (e apenas isso!) e aproximação ao original. Ao que parece, a pedido da Directora do Museu dos Coches, o coche foi redourado integralmente, mantendo o original subjacente. A ser verdade, apenas se pode dizer que a culpa não é só da Fundação, é também do Museu, não é possível desculpabilizar a Fundação de alguma forma. Já agora gostava de saber porque a intervenção foi publicitada como sendo toda efectuada em área pública, visível do público e, quando o tratamento chegou à fase de redouramento, a zona de trabalho foi imediatamente isolada...
Agora, digam-me porque razão haveria eu de ficar contente com a escolha para Ministra da Cultura?
* A embaixada era composta de 15 coches no total, sendo que os 3 principais representavam os Oceanos, a Navegação e Conquista e, finalmente, a Coroação de Lisboa como Capital do Império.
Caso queiram ter a noção das dimensões e do valor da obra em questão (ou, caso sejam habitués do Museu Nacional dos Coches, para saberem a que peça me refiro), vejam abaixo o que mãos incautas (criminosas, parecer-me-ia mais adequado, mas enfim...) destruíram.
A 8 de Julho de 1716, a sumptuosa embaixada de D. João V ao Vaticano é recebida pelo Papa Clemente XI. Entre inúmeras riquezas, contava-se um conjunto de três coches* (atente-se, um conjunto, não se tratam de três coches, mas sim de um conjunto composto de três peças). Estes três coches representam uma obra única do Barroco português, tendo sido efectuados com um trabalho de entalhe de excepcional qualidade e com a particularidade de serem, na sua quase totalidade, dourados a mordente, de forma a resistirem à chuva e humidade decorrente da utilização dos coches.
Um primeiro coche viria a ser conservado pelo Instituto José de Figueiredo (actual Instituto Português de Conservação e Restauro), vindo esta intervenção a ser geralmente aceite pelo meio da Conservação e Restauro. Aquando da Expo 98, um segundo coche, o Coche dos Oceanos, viria a ser também ele intervencionado. Ora, o Museu dos Coches procurou um mecenas que custeasse os cerca de 60 mil contos da intervenção necessária no Coche dos Oceanos, bem como alguém que fizesse a intervenção. O mecenas viria a ser o Banco Espírito Santo, a intervenção acabaria por ser feita pela Fundação Ricardo Espírito Santo e Silva (presidida pela actual Ministra da Cultura). Nem me vou deter na coincidência de apelidos...
Pessoas mais conhecedoras da história dizem-me que aquando do tratamento do primeiro coche, pelo IJF, a identificação do mordente viria a ser inconclusiva, por ser uma técnica pouco comum em Portugal.
Quanto ao Coche dos Oceanos, este foi totalmente desmontado, tendo sido refeitas lacunas na madeira de suporte. Até aqui, consoante o estado das referidas madeiras, até se poderia considerar esta como uma metodologia aceitável. No entanto, a intervenção não ficou por aqui. Tecidos originais foram substituídos por novos e, pior que tudo, o coche foi redourado a água, sobre o original. Para compôr ainda mais o ramalhete, esta nova camada de ouro foi brunida, técnica que dá ao ouro um brilho muito superior e que nunca tinha sido aplicada originalmente no Coche dos Oceanos, visto que a técnica de douramento a mordente não permite tal procedimento.
Ou seja, o Coche dos Oceanos foi completamente desvirtuado, destruído na sua essência como obra de arte, visto hoje apresentar um brilho Pepsodent que nunca existiu. Mais grave se torna esta série de erros grosseiros quando comparado com os restantes coches. Sim, porque não nos esqueçamos que era suposto o Coche dos Oceanos fazer conjunto com outros dois!
Quis o Museu dos Coches que assim se fizesse. O BES pagou e a FRESS efectuou o trabalho. Estávamos perante um crime histórico e patrimonial. Os restantes coches não se encontravam num estado de degradação tal que justificasse uma intervenção tão profunda. Aquele que foi tratado pelo IJF lá continua, sem problemas. Não há absolutamente nenhuma justificação possível para este atentado. No entanto, ainda se tenta, numa publicação relativa à intervenção, culpabilizar outro interveniente no processo (sacudir a água do capote, é uma especialidade de algumas pessoas, como sabemos.).
Fundamento teórico? É muito simples, esta intervenção não respeitou nem a Teoria da Intervenção Mínima nem os conceitos de reversibilidade dos tratamentos aplicados, que são as linhas-guia de qualquer conservador-restaurador digno desse nome actualmente (e sim, estes princípios já são largamente difundidos há anos, mesmo antes desta intervenção). Assim sendo, como é possível que a Fundação Ricardo Espírito Santo e Silva, referenciada pela Comunicação Social como uma instituição ligada à Conservação e Restauro cometesse um erro tão grosseiro? Muito simples, o facto é que a referida Fundação não se ocupa da Conservação e Restauro baseada em quadros técnicos qualificados, em termos científicos (ou, pelo menos, não o fazia à época). O facto é que a lógica por trás da visão que esta Fundação tem da Conservação e Restauro se baseia em técnicas artesanais, numa aproximação empírica, não sustentada em factos científicos, da intervenção a desenvolver. Conclusão? Fizeram porcaria, de tal forma que o caso é estudado em Universidades estrangeiras como um exemplo do que não se deve fazer, havendo, inclusivamente, visitas de estudo propositadamente para ver como é possível "matar" património tão raro e valioso com um sorriso plastificado nos lábios!
Pormenores extra: aparentemente, a proposta de tratamento inicial referia apenas a reintegração das lacunas existentes na camada de ouro (e apenas isso!) e aproximação ao original. Ao que parece, a pedido da Directora do Museu dos Coches, o coche foi redourado integralmente, mantendo o original subjacente. A ser verdade, apenas se pode dizer que a culpa não é só da Fundação, é também do Museu, não é possível desculpabilizar a Fundação de alguma forma. Já agora gostava de saber porque a intervenção foi publicitada como sendo toda efectuada em área pública, visível do público e, quando o tratamento chegou à fase de redouramento, a zona de trabalho foi imediatamente isolada...
Agora, digam-me porque razão haveria eu de ficar contente com a escolha para Ministra da Cultura?
* A embaixada era composta de 15 coches no total, sendo que os 3 principais representavam os Oceanos, a Navegação e Conquista e, finalmente, a Coroação de Lisboa como Capital do Império.
Caso queiram ter a noção das dimensões e do valor da obra em questão (ou, caso sejam habitués do Museu Nacional dos Coches, para saberem a que peça me refiro), vejam abaixo o que mãos incautas (criminosas, parecer-me-ia mais adequado, mas enfim...) destruíram.